quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O CAMALEÃO E EU-MEMORIAL DE LEITURA DA PROFESSORA SANDRA NEILIANA


Enquanto meu primo, Claudio, se arrumava pra ir à escola: vaselina, gel de pobre, no cabelo para não sair nem um fio do lugar, camisa branca de tergal – e com bolso, dente escovado, gotinhas de Tabu ou Alma de Flores no cangote… eu folheava um livro didático dele. Era uma coisa maravilhosa! Como ele era inteligente! Imagina, compreender aquelas linhas absurdamente complicadas de risquinhos emaranhados impressos no papel. Era quase meio dia e o sol fazia a terra de cascalho alaranjado parecer mais quente ainda e la ia ele: cabelo engomado, farda esticada e livros embaixo do braço. Que inveja!
Esse ritual se repetia cotidianamente e minha inveja crescia. Eu amava os desenhos do livro dele, eram flores vermelhas, de um vermelho vivo impensável na aridez da terra e das pessoas pobres, aquele tipo de flor só crescia em livros e na minha imaginação…
Mesmo antes de aprender a ler, a leitura de livros me fascinava e isso pra mim é um mistério.
Sou a mais velha de quatro filhas, pais analfabetos, realidade analfabeta…
Meu pai, apesar de nunca ter posto os pés numa escola, para nossa sorte, achava bonito a pessoa saber a leitura, como trabalhava em borracharia, sempre ganhava revistas dos caminhoneiros. Ele evidentemente, selecionava o que trazia para casa pelas figuras que via, o que não tinha figura pornográfica podia ser levado para casa sem perigo (coitado do meu pai, que nunca descobriu quanto conto erótico lemos na adolescência).
Um dia, ele trouxe dois livros de história infantil: “Bom dia todas as cores” de Ruth Rocha e “Marcelo e as palavras”. O primeiro começava com um camaleão, altruísta que só acordando feliz e recitando: “Bom dia, sol! Bom dia, flores! Bom dia, todas as cores!” e partindo para da cansativo na perseguição da tarefa árdua de agradar a todos que ia encontrando pelo caminho. Como ninguém nunca consegui agradar a todos, o pobre camaleão foi obrigado a repensar sua postura e assim, quando o sol se punha, avermelhando o horizonte, o camaleão filosofava: “Que seria do azul, se todos gostassem do amarelo?” Até hoje, quando vejo um crepúsculo, caio na melancolia camaleônica de Ruth Rocha e me pergunto isso. Ainda bem que meu livrinho tinha começo, meio e fim, diferentes dos muitos que meu pai trouxera e que por faltarem as páginas finais me deixavam na mais absoluta frustração, imaginando mil possibilidades e impossibilidades de final feliz.
Aprender a ler foi sem dúvida, a maior evolução da minha vida… (só perdendo para maternidade, que abre outras portas de percepção, evidente)… minhas estadas comigo mesma, semelhantes ao crepúsculo do camaleão, sempre me levam a estágios novos, a conhecimentos adquiridos não nas leituras apenas, não nas gravuras apenas, mas também nas flores que vi e que imaginei, nas almas das flores, de vasos que enfeitei e depois fotografei da forma mais brega, bucólica e minha que pude inventar ou imitar de qualquer catálogo antigo.
A inveja que senti do primo letrado foi a vaselina que empastelava meus sonhos na voz de José de Alencar: Quem sabe ser Diva, senhora ou Licíola? Ou ter a dissimulação encantadora de Capitu, e um Bentinho que gostasse tanto dos meus olhos amendoados? Pena Machado de Assis ser tão pouco romântico…
Eu, por outro lado, camaleoa que só vesti tantas cores a minha vida toda…
Cores que gostava que não gostava, que me caiam bem, que me deixavam mais alegre, que alegravam aos outros… Quis ser um arco-íris e ser absorvida depois da tempestade…Não deu. Para isso o camaleão está lá, pronto a me indicar a direção:
“Eu gosto dos bons conselhos, mas faço o que me convém.
Quem não pode agradar a si mesmo
Não pode agradar a ninguém”

Nenhum comentário:

Postar um comentário